segunda-feira, 21 de setembro de 2009

BUGALHÕES E FERROBISTAS

No seu livro Alentejo é Sangue, Antunes da Silva fala-nos de um Alentejo distante no tempo mas ainda demasiado próximo na realidade.
Num dos capítulos, Bugalhões e Ferrobistas, que tem como cenário a Cidade de Évora, o autor fala-nos de uma forma de vida que me fez pensar e que acho que vale a pena meditar por também ela não estar totalmente fora do presente.
Vou contar-vos o que vi, como se eu fosse o Barbeiro, e vocês, o Cainó:

O Cainó teve conhecimento de que eu lhes queria contar um episódio histórico, e logo correu a convocar todos os amigos para o acompanharem.

Ao chegarem à barbearia, recebi-os com um sorriso aberto e bons conselhos: disse-lhes que a infância é uma idade maravilhosa e deve ser bem aproveitada. Perguntei-lhes se já conheciam a história dos bugalhões e ferropistas. Embora eles já tivessem ouvido falar dela, gostavam da maneira como as contava, pelo que responderam que nada sabiam.

Contei-lhes então que em tempos idos, parte da cidade era terra de bugalhões, e outra parte pertencia aos farrobistas. Cada uma das partes diferenciava-se pela forma de vestir e até pela alimentação. O que se comia num lado, não se comia no outro. De tal forma que qualquer forasteiro tinha que se limitar aos pratos da zona. Não encontrando nada que se cozinhasse no outro. Acontecia até que, sendo a câmara e as finanças num dos lados, os do outro lado não se atreviam a ir lá, pelo que tinham um intermediário, previamente aceite pelo outro lado, para tratar de todos os assuntos a realizar nessa área.

Quando, por engano ou atrevimento, alguém invadia a área contrária, era severamente castigado, e logo feito prisioneiro.

Após a devolução do prisioneiro, em campo neutro seguiam-se combates entre as facções. Fisgas, pedras e fundas, eram as armas utilizadas.

Quando se recuperava um prisioneiro, era logo rodeado pelos companheiros para saberem o que tinha visto do outro lado: coisas novas, obras e melhoramentos e também como se deixara apanhar.

Logo começava o combate com pedradas a torto e a direito, com vidros das janelas e candeeiros partidos. Havia sempre feridos a tratar no hospital. A batalha terminava com a chegada da guarda.

A história foi-se repetindo através dos tempos.

Certo dia, chegou aos terrenos dos farrobistas, um desconhecido que despertou a curiosidade e desconfiança nos naturais. O estranho perguntou pelo Sr. Sampedro antiquário, que era seu irmão. Encontrada a casa, entrou e lá se demorou muito tempo. O mesmo homem foi visto depois em terra de bugalhões, perguntando pelo Sr. Sampedro Alvanel, que era seu irmão. Encontrada a casa, por lá se demorou. O homem passou então a almoçar em terras de farrobistas, e a jantar e dormir em solo de bugalhões. Um dia, às portas de machede, subiu a um banco e falou às pessoas: disse-lhes que voltava à sua terra, vindo da América, e se admirava de ver a cidade dividida, e o povo da mesma raça a lutar pelos mais ridículos. De tal forma que tendo ele dois irmãos a viver em partes diferentes da cidade, estes não mantinham relações familiares, só para não romperem um pacto medieval.

Ora se na cidade viviam pretos e até amarelos, gente de outras cores e raças que eram respeitados pelas duas comunidades, porque não se estimavam a eles próprios, e mandavam às urtigas as rivalidades que só servem para alterar os bons costumes e desencadear ódios.

“Um país só evolui na unidade do seu povo” dizia o americano: acrescentando ainda: “para haver unidade tem de haver tolerância”. Numa das partes nascera o seu pai, na outra nascera a sua mãe, pelo que admirava ambos os bairros, e sentia cada um como seu. Propôs então que se encontrassem representantes dos dois bairros, para se fazer a paz.

De ambos os lados houve alguns protestos e ameaças, lembrando cada um dos lados, que ele estava comprometido com o outro lado.

Mas a semente da concórdia ficou lançada. Os combates terminaram, os raptos e provocações não aconteciam mais. Um bugalhão fugiu com uma farrobista, e foram casar a uma aldeia próxima. Um farrobista fugiu com uma bugalhoa, e foram casar à capela de uma quinta vizinha.

Nos jornais da cidade, o “americano” escrevia que já não havia bugalhões e farrobistas, mas um só povo e uma só língua, defendendo os mesmos interesses. E falou na vitória dos tolerantes e dos simples.

As bugalhoas casavam com farrobistas, as famílias uniram-se. Cresceu a fama da cidade. E aos poços, ano após ano, a terra purificou-se.

Às vezes é assim: uma frase inspirada vale um poema. De desavindos, passaram a ser irmãos uns dos outros. O “americano”, satisfeito por ter voltado à terra, pensou que já podia morrer descansado.

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