quinta-feira, 24 de novembro de 2016

ENCRUZILHADA

O Carretas era aquilo a que se pode chamar de Boa Gente. Não conseguia formar família, mas não lhe faltavam atributos. No montado, no olival ou no pomar, não tinha rival. Era bom a tirar cortiça, mestre na esgalha e um cientista em qualquer tipo de poda. Gostava de ensinar e muitos novatos eram seus aprendizes.
Mas não há bela sem senão, e o ponto fraco do Carretas era o vinho. Homem bem disposto, aceitava a sua sina como coisa do destino. Costumava dizer que o vinho tinha as costas largas, e até pagava as favas dos bagaços que ingeria em excesso. A quem o acusava de beber copo atrás de copo, respondia envergonhado que não conseguis beber dois ao mesmo tempo. Os amigos começaram a dizer-lhe que por esse caminho não arranjava mulher, pois nenhuma quereria dividir a sua vida com alguém que se entregava daquela forma à bebida.
O Carretas estava farto de ouvir os conselhos e as criticas dos amigos, e quase não ligava a isso, mas isso de não arranjar mulher, mexeu com ele. Pensou, pensou e tomou uma decisão: Ia mudar de vida, e para isso ninguém melhor que o Benjamim Escarcéu.
O Escarcéu era assim uma espécie de feiticeiro da tribo. Entre benzeduras, cobranto, mau olhado, fazer e desfazer namoros, e até números da sorte grande, eram-lhe atribuídos verdadeiros milagres.
Confrontado com o problema do Carretas, deu de barato a resolução do problema, desde que este pagasse e cumprisse rigorosamente os rituais a que teria de submeter-se.
Tudo passava por um cerimonial a acontecer numa encruzilhada à meia noite. Teve o Carretas de arranjar quatro patas de galinha pedrês, quatro olhos de rã , quatro penas de coruja velha e um garrafão meio de vinho tinto. A distribuição dos artefactos pelas ramificações da encruzilhada foi feita pelo Escarcéu ao som de uma lenga-lenga que pretensamente seria uma oração. Ajoelhou-se o Carretas a meio da encruzilhada, enquanto o Benjamim Escarcéu o contemplava com um belo par de carolos no totiço, provavelmente para afastar os vapores do álcool. Mesmo parecendo um contra censo, foi ainda o Carretas borrifado com o meio garrafão de tinto. Não achou graça à posologia da medicação, o Carretas, mas se era para se ver livre do vicio, pois que assim fosse.
O Escarcéu mandou o Carretas em paz, não sem antes lhe dizer para não deixar de beber de repente, e que teria de reduzir o consumo a pouco e pouco. Tomou disso boa nota o Carretas, e pagou os 50 escudos combinados.
O Carretas levantou-se cedo e foi à vila. Maquinalmente chegou-se á porta da tasca do Candeias. Levou em conta a estratégia de ir reduzindo o consumo do álcool. Chegou-se ao balcão e pediu três copos de vinho que bebeu de seguida. Saiu para a rua, cumprimentou amigos, e respirou fundo,estava confiante no resultado da sua empreitada. Voltou ao balcão, e fiel ao seu propósito, pediu dois copos de vinho que rapidamente desapareceram. Voltou à rua, cumprimentou mais amigos que iam e vinham nos seus afazeres. Voltou ao balcão e pediu um único copo de vinho. Bebeu e saiu desconfiado. Algo não estava a correr como esperava. Afinal quanto menos bebia, mais bêbado estava. Fora enganado. Maldito charlatão aquele Escarcéu! Lá se fora o sonho de merecer a atenção feminina. Ah, mas isto não ficava assim ! Um verdadeiro escarcéu faria ele se o Escarcéu não lhe devolvesse os 50 paus. e vá lá ele não exigir a devolução do meio garrafão de tinto, já estava com sorte. Pegou na pedaleira e lá foi à quinta do Benjamim Escarcéu, que desta vez falhara na sua fama de benzedor predestinado ao sucesso.

Aníbal Lopes



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