O Carretas era aquilo a que se pode
chamar de Boa Gente. Não conseguia formar família, mas não lhe
faltavam atributos. No montado, no olival ou no pomar, não tinha
rival. Era bom a tirar cortiça, mestre na esgalha e um cientista em
qualquer tipo de poda. Gostava de ensinar e muitos novatos eram seus
aprendizes.
Mas não há bela sem senão, e o ponto
fraco do Carretas era o vinho. Homem bem disposto, aceitava a sua
sina como coisa do destino. Costumava dizer que o vinho tinha as
costas largas, e até pagava as favas dos bagaços que ingeria em
excesso. A quem o acusava de beber copo atrás de copo, respondia
envergonhado que não conseguis beber dois ao mesmo tempo. Os amigos
começaram a dizer-lhe que por esse caminho não arranjava mulher,
pois nenhuma quereria dividir a sua vida com alguém que se entregava
daquela forma à bebida.
O Carretas estava farto de ouvir os
conselhos e as criticas dos amigos, e quase não ligava a isso, mas
isso de não arranjar mulher, mexeu com ele. Pensou, pensou e tomou
uma decisão: Ia mudar de vida, e para isso ninguém melhor que o
Benjamim Escarcéu.
O Escarcéu era assim uma espécie de
feiticeiro da tribo. Entre benzeduras, cobranto, mau olhado, fazer e
desfazer namoros, e até números da sorte grande, eram-lhe
atribuídos verdadeiros milagres.
Confrontado com o problema do Carretas,
deu de barato a resolução do problema, desde que este pagasse e
cumprisse rigorosamente os rituais a que teria de submeter-se.
Tudo passava por um cerimonial a
acontecer numa encruzilhada à meia noite. Teve o Carretas de
arranjar quatro patas de galinha pedrês, quatro olhos de rã ,
quatro penas de coruja velha e um garrafão meio de vinho tinto. A
distribuição dos artefactos pelas ramificações da encruzilhada
foi feita pelo Escarcéu ao som de uma lenga-lenga que pretensamente
seria uma oração. Ajoelhou-se o Carretas a meio da encruzilhada,
enquanto o Benjamim Escarcéu o contemplava com um belo par de
carolos no totiço, provavelmente para afastar os vapores do álcool.
Mesmo parecendo um contra censo, foi ainda o Carretas borrifado com o
meio garrafão de tinto. Não achou graça à posologia da medicação,
o Carretas, mas se era para se ver livre do vicio, pois que assim
fosse.
O Escarcéu mandou o Carretas em paz,
não sem antes lhe dizer para não deixar de beber de repente, e que
teria de reduzir o consumo a pouco e pouco. Tomou disso boa nota o
Carretas, e pagou os 50 escudos combinados.
O Carretas levantou-se cedo e foi à
vila. Maquinalmente chegou-se á porta da tasca do Candeias. Levou em
conta a estratégia de ir reduzindo o consumo do álcool. Chegou-se
ao balcão e pediu três copos de vinho que bebeu de seguida. Saiu
para a rua, cumprimentou amigos, e respirou fundo,estava confiante no
resultado da sua empreitada. Voltou ao balcão, e fiel ao seu
propósito, pediu dois copos de vinho que rapidamente desapareceram.
Voltou à rua, cumprimentou mais amigos que iam e vinham nos seus
afazeres. Voltou ao balcão e pediu um único copo de vinho. Bebeu e saiu
desconfiado. Algo não estava a correr como esperava. Afinal quanto
menos bebia, mais bêbado estava. Fora enganado. Maldito charlatão
aquele Escarcéu! Lá se fora o sonho de merecer a atenção
feminina. Ah, mas isto não ficava assim ! Um verdadeiro escarcéu
faria ele se o Escarcéu não lhe devolvesse os 50 paus. e vá lá ele não exigir a devolução do meio garrafão de tinto, já estava com sorte. Pegou na
pedaleira e lá foi à quinta do Benjamim Escarcéu, que desta vez
falhara na sua fama de benzedor predestinado ao sucesso.
Aníbal Lopes
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