domingo, 15 de agosto de 2010

MINHA MEMÓRIA DE MAIO


" Esta hipnose chega-me de lá, da charneca de Montargil, do tempo da minha infância rústica, em que perseguia perdigotos no restolho, batia latas aos pardais no arrozal, desalojava grilos à custa de palhinha e de mijadela no buraco dissimulado no tremoçal, achava ninhos de poupa nas tocas de azinheiras velhas, tocava o burro à nora e dormia a sesta com o meu pai no fresquinho da horta à sombra das laranjeiras gémeas.
Depois, jovem migrado na cidade, filho pródigo mas charnequenho dos quatro costados, sempre o apelo daquela chão raso onde desabrochou a minha alma de ganhão ou de pastor me devolvei às origens.
Hoje, maltês moderno com charneca tatuada na pele, ainda transporto no sangue as cores das papoilas, retenho nos olhos o atrevimento empírico de lagarto assustado, ouço o eco de chocalhos remotos e carrego no alforge a nostalgia de um perfume exclusivo e efémero que o ar tinha em Maio florido de urzes, giestas, tojos, carquejas, estevas e rosmaninhos.
Paraíso de toutinegras, melros e cotovias, terra prometida de abelhas, borboletas e joaninhas; fabulário de cigarras e formigas, corvos e raposas, cegonhas e lebres; toalha imaculada de margaridas e saramagos bordados a violetas; açafate de amoras medronhos e murtinhos; corpo adormecido que a Primavera acorda e remoça para manjar viçoso de rebanhos e manadas.
A charneca antiga é ainda a aguarela mais viva nas brumas da minha memória oxidada, que me fascina, seduz e hipnotiza."


(excerto do livro "A Deriva do Amparo", do escritor Montargilense PRATES MIGUEL)

1 comentário:

  1. Imprecinante arte de contar sobre a sua terra e a sua gente.
    Descrição feita poesia, pintada com as cores da paixão.
    Um escritor poeta.
    Um poeta escritor.

    ResponderEliminar