quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

"DESACORDORTOGRÁFICO"


"Alguém por favor explique como se vai ensinar uma criança a escrever com a ortografia unificada do português (é assim que o Acordo Ortográfico lhe chama). Alguém por favor explique como uma criança que já saiba escrever e que seja apanhada entre ortografias vai conseguir lidar com a insanidade acordortográfica a meio do seu percurso escolar. Alguém por favor explique como se vai transmitir as noções cruciais de correcção e erro a um aprendente jovem da escrita.

Explico o meu problema. Quero perceber a razão de coisas deste tipo, quero saber como se explicam estas inexplicabilidades:

COR-DE-ROSA escreve-se com hífen, por causa da consagração pelo uso, diz o AO, mas COR DE LARANJA escreve-se sem hífen, porque não.

Que tem o uso a ver com ortografia? Se algumas pessoas passarem a conduzir sistematicamente pela esquerda ou a passar sinais vermelhos, algum decisor pensará em consagrar e permitir tais práticas como uso, em vez de manter a sua proibição como violações que são de um código em vigor?

Quantas vezes será preciso escrever mal até que os erros passem a ser “formas consagradas pelo uso”?

Como explicar a um miúdo de 12 anos que o seu uso na escrita quotidiana de sms ou de mensagens no MSN (ou similar) não consagra nada, apesar de o AO aceitar a supressão de H inicial quando consagrada pelo uso? Pelo uso de quem e onde?

Como se explica a acentuação em coisas como as que se seguem?


PÁRA (verbo) deixa OBRIGATORIAMENTE de ter acento e escrever-se-á PARA, não se distinguindo da preposição PARA.

Mas PÔR (verbo) mantém OBRIGATORIAMENTE acento para se distinguir da preposição POR.
PODE (pretérito perfeito) tem FACULTATIVAMENTE acento (PÔDE) para se distinguir de PODE (presente do indicativo).

FORMA (substantivo) tem FACULTATIVAMENTE acento (FÔRMA) para se distinguir de FORMA (verbo e substantivo).

Mas ACORDO, ACERTO, CERCA, etc. (substantivos)OBRIGATORIAMENTE não têm acento e não se distinguem deACORDO, ACERTO, CERCA, etc. (verbos).

DEMOS (presente do conjuntivo) tem FACULTATIVAMENTE acento (DÊMOS) para se distinguir de DEMOS (pretérito perfeito).

Mas PODEMOS (presente do indicativo) OBRIGATORIAMENTE não tem acento e não se distingue da forma PUDEMOS (pretérito perfeito).


E as formas com acentuação facultativa que o AO contempla AVERÍGUO, AVERÍGUAS, AVERÍGUA, ENXÁGUO, ENXÁGUAS, ENXÁGUA, DELÍNQUO, DELÍNQUES, DELÍNQUE, etc. dos verbos AVERIGUAR, ENXAGUAR, DELINQUIR? De que língua são? O que as distingue de certas formas incorrectas, muito correntes em Portugal, como FÁÇAMOS, PÓSSAMOS, TÊNHAMOS e SUPÔNHAMOS? E por que é que estas últimas não são então formas consagradas pelo uso?
Qual é a regra?

O que impedirá a mente criativa de crianças em idade escolar de gerar abdutivamente formas gráficas que nem a nova ortografia xenófila contempla? Os que as impede de FACULTATIVAMENTE introduzirem acentos circunflexos em palavras com Ê e Ô tónicos, se a nova ortografia unificada se baseia no princípio fonético, na consagração pelo uso e na facultatividade?

Como perceber o que é facultativo e o que é obrigatório? Como entender o que se mantém para distinguir e o que se não mantém apesar de distinguir? Como é que confusões destas contribuem para simplificar a ortografia portuguesa, outro princípio peregrino do acordismo?

RACIONAMOS (pretérito perfeito) tem FACULTATIVAMENTE acento para se distinguir de RACIONAMOS (presente do indicativo). A vogal pré-tónica escrita A (o primeiro A) é fechada (na realidade, média).

FRACIONAMOS (pretérito) tem FACULTATIVAMENTE acento para se distinguir de FRACIONAMOS (presente). Tem também FACULTATIVAMENTE um C mudo — FRACCIONÁMOS ou FRACCIONAMOS (quatro formas correctas no total). Porquê? Porque no Brasil a consoante é pronunciada. Como no Brasil se escreve com C nós podemos escrever com C. E a vogal pré-tónica escrita A é aberta.

ACIONAMOS (pretérito) tem FACULTATIVAMENTE acento para se distinguir de ACIONAMOS (presente). OBRIGATORIAMENTE não tem um C mudo — ACCIONÁMOS ou ACCIONAMOS são erros ortográficos. Porquê? Porque no Brasil a consoante não é pronunciada: como no Brasil se escreve sem C em Portugal não se pode continuar a escrever com C. E a vogal pré-tónica escrita A também é aberta.
Se é possível escrever DECEÇÃO e RECEÇÃO com um P mudo FACULTATIVAMENTE — porquê? porque no Brasil se escreve com P — o que impedirá jovens estudantes de criarem formas analógicas como CORREPÇÃO ou INTERSEPÇÃO com P mudo, já que as formas actuais CORRECÇÃO e INTERSECÇÃO perdem OBRIGATORIAMENTE o C mudo e passam a ser erros ortográficos?


Repare-se que DECEÇÃO passa a ter um P mudo facultativo, não porque a letra E se pronuncie com vogal aberta (isso não tem importância nenhuma para os autores do Acordo, como eles próprios dizem — está escrito na Nota Explicativa do AO), mas porque no Brasil se escreve com P.

Ou seja, o meu P mudo, que até agora era euro-afro-asiático-oceânico e servia para indicar o timbre da vogal precedente, passará a ser brasileiro, e é por ser brasileiro e por não ser mudo na norma culta brasileira que eu vou poder continuar a escrevê-lo muda e ortograficamente em Portugal.

Alguém consegue explicar isto a miúdos de 10-12 anos apanhados entre ortografias?

Para sabermos escrever bem em Portugal teremos de saber como se escreve bem no Brasil. Isto fará algum sentido para uma criança ou jovem em idade escolar ou para algum professor?

Alguém explique por favor como será um manual escolar unificado.

Haverá listas de formas com consoantes mudas facultativas e listas de formas com consoantes mudas proibidas?
Com hífenes consagrados pelo uso e hífenes proibidos?
Com acentos facultativos, obrigatórios e proibidos?

Terá de haver, forçosamente, pois não há discernivelmente regras que iluminem o uso da nova ortografia. Os professores, enquanto não conseguirem decorar essas listas, terão de andar sempre com elas debaixo do braço nas aulas e na correpção dos testes dos alunos.

Uma alternativa é o sábio conselho dos U2 de há quinze anos, nos tempos do Zooropa Tour: “WATCH MORE TV”. Ou seja, veja mais telenovelas brasileiras e aprenda português.

Os professores poderão FACULTATIVAMENTE ensinar as grafias que preferem? Cada professor e cada aluno escolherá a formacorrepta que mais lhe agradar? Ou será por ano, ou por escola, ou por distrito?

E quando um professor fundamentalista que escreve Ps mudos (autorizados pela norma culta brasileira, bem entendido) faltar e for substituído por um professor fonético que não escreve Ps mudos? Muda a ortografia nesse dia na sala de aula?

E os encarregados de educação como farão para esclarecer os menores a seu cargo e os acompanhar nos seus estudos de português?
Aprender a escrever e a ler (que já agora, são coisas que o cérebro aprende separadamente) é uma tarefa portentosa e difícil, que requere a aquisição de hábitos, rotinas, regras, disciplina, repetição. Reiteração contínua de padrões, comportamentos e usos. Como se aprende sem estabilidade no processo de aprendizagem?

Quantas revisões da ortografia unificada se avizinham nos próximos anos para maximizar o princípio fonético, acompanhar o uso e unificar mais a acordortografia unificada?

Como foi possível chegar-se a este ponto em que se tem que explicar o obviamente inexplicável, e em que o obviamente inargumentável tem que ser argumentado ?

Que processo de involução cultural se abateu sobre nós que nos trouxe a esta conjuntura bizarra, em que o absurdo evidente do AO é que tem que ser explicado e demonstrado (como se não fosse evidente) e a sua não aplicação é que tem que ser justificada (como se ninguém percebesse o desastre que é)?

O colunista brasileiro Hélio Schwartsman escreveu sobre o AO, “quanto mais penso, mais fico revoltado. Toda a situação pode ser resumida como um conluio entre acadêmicos espertos e parlamentares obtusos.”

Não me satisfaz completamente, não explica tudo, mas faz algum sentido. É, pelo menos, um fragmento de explicação."

António Emiliano | Linguista e filólogo | Universidade Nova de Lisboa
publicado in Jornal de Notícias | 13/7/2008

(Retirado Daqui)

Sem comentários:

Enviar um comentário