A
Reforma Agrária é ainda hoje uma referência do Abril do Povo, mas são cada vez
menos os que a viveram. Nesta altura de crise, em que o País e o Povo estão nas
mãos de interesses estrangeiros, e em que a cada dia que passa o nosso futuro é
mais negro, não posso deixar de lembrar um tempo em que acreditamos que tínhamos
o nosso destino nas nossas mãos. Não se cumpriu o sonho, mas a experiência que
vivi, essa recordá-la-ei para sempre:
Em Outubro de 1975, quando regressei de
Angola, era o tempo do sonho chamado “Reforma Agrária”. Curiosamente não
assisti ao chamado Verão quente de 75, de que fez parte a ocupação dos
latifúndios agrícolas do Alentejo, mas as noticias chegavam a Angola, e sabia
que os camponeses, na tentativa de trazer melhores dias para os campos de
Portugal, e mais concretamente para os campos do Alentejo, tinham avançado para
a ocupação de milhares de hectares de terra abandonada, na tentativa de acabar com uma
sociedade latifundiária, que condenara à miséria, milhares de Alentejanos.
Pois foi nesse sonho que eu acabei por me
integrar. Eu não sabia nada de agricultura, mas foi muito fácil a aprendizagem,
pois havia sempre alguém disposto a ensinar. Encontrei um ambiente fantástico
onde havia lideres, mas não havia chefes. Todas as decisões eram tomadas em
plenário, fosse para comprar ou para vender, ou simplesmente para escolher um
responsável para qualquer atividade.
Era visível no rosto das pessoas a felicidade
e a confiança com que se enfrentava o trabalho. As pessoas sentiam que eram
donas do seu destino e do seu futuro. Aquela gente de mãos calejadas pela
enxada, pela roçadora e pela gadanha, não se limitavam a cultivar os vales
férteis e fáceis. Eles avançavam sobre os montes e as serras, e arrotearam
terras de estevas e tojal bravio que nunca antes tinha visto uma ferramenta.
Construíram barragens e mudaram a paisagem. Onde antes havia mato cerrado,
apareceram cearas de trigo, milho, centeio, cevada e até tomate. Onde havia
salgueirais, voltaram a prosperar os canteiros de arroz.
O Alentejo voltava a ser o “Celeiro de
Portugal”.
Na UCP (Unidade Colectiva de Produção) 12 de
Maio, fiz de tudo um pouco: Limpei valas e desbravei os silvados que impediam a
água de chegar aos cultivos cavei terra para arroz e semeei pasto para o gado,
plantei morangos e até cantei ao desafio. Tornei-me mestre na arte de podar
pessegueiros, aprendendo as técnicas de abrir a árvore para entrar o sol,
cortar as guias que a faziam crescer demais, dar-lhe largura para facilitar a
apanha e escolher as melhores guias que dariam depois a produção do ano
seguinte. Desisti de aprender a podar macieiras e ameixeiras, porque nunca me
entendi com a técnica.
Foi também ali que aprendi a conhecer o povo
a que pertencia, mas a vida levara-me por outras andanças.
O homem do campo daquela altura era rude,
pouco instruído e pouco dado às regras do comportamento urbano. Mas era
extremamente honesto e confiável. Era trabalhador e tinha um enorme sentido do
dever no que respeitava à família. Descobri também que isso do homem do campo
bater na mulher, não passava de um mito. Trabalhei com centenas de casais, e na
grande maioria dos casos, era ela que dirigia a família, administrava a casa e
decidia o que fazia falta e o que era supérfluo. Vi muitas vezes em dia de
pagamento, o homem receber o seu ordenado e entregar o envelope à esposa. À
hora do almoço, sentados no chão ou em pequenos troncos, eram quase sempre as
mulheres que escolhiam o tema da conversa, e eram elas também que escolhiam o
rumo que ele tomava.
Mas o sonho não durou muito.
A Reforma Agrária nunca passou de um sonho, e
não se traduziu em legislação que alterasse o regime de propriedade, nem da
distribuição da terra.
Os latifundiários apoiados pelos diversos
governos, de que eles e os seus interesses também faziam parte, acabaram por
recuperar as terras que não se sabem bem como foram adquiridas ao longo dos
tempos, e a resposta à pobreza do campesinato Alentejano, fica mais uma vez
adiado, por culpa da improdutividade de largos milhares de hectares de terra
abandonada pela burguesia estéril e inútil deste pobre país.
O resultado não se fez esperar: Nos anos 80 o
governo indemniza os latifundiários com chorudas recompensas que acompanham a
devolução da terra melhorada, e a pobreza voltou ao Alentejo, e com ela a
necessidade do povo voltar à emigração.
Resta-nos a esperança chamada “Alqueva”- um
dos sorvedouros dos dinheiros públicos de que ninguém fala, e que visa
transformar o Alentejo num imenso campo de golfe para os senhores do grande
capital recuperarem forças das árduas tarefas diárias.
Para nós, povo Alentejano, sobram os
quilómetros e quilómetros de arame farpado, e milhares de tabuletas ameaçadoras
que nos atiram à cara os decretos-lei que nos proíbem sequer a aproximação,
quanto mais apanhar uns espargos, tubaras ou “outros frutos silvestres”.
Das 412 Cooperativas e UCPs criadas com a
Reforma Agrária, resta a memória das pessoas que deram corpo a um movimento que
abriu brechas na sociedade Portuguesa, mas que acabou por não cumprir o sonho,
tal como o próprio 25 de Abril não cumpriu.
Mas o Povo está na Rua. Teremos nós força
para acordar do pesadelo, e recuperar o sonho?
Aníbal Lopes
(Na imagem - Mural UDP, 1980, in Citizen Grave)
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