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Dante e Virgílio no Inferno, quadro de William-Adolphe Bouguereau. (wikipedia) |
Na Divina Comédia de Dante o Inferno está dividido em nove Círculos de sofrimento. A situação na Europa e, principalmente, na Grécia, em Portugal e na Irlanda, fazem-me recordar esses Círculos Infernais. Mas como é que aqui chegámos? Somos mesmo, juntamente com os gregos, preguiçosos? Será que os países periféricos vivem mesmo acima das suas possibilidades? Foi mesmo o despesismo egoísta dos nossos pais de que criou o problema que hoje estamos a viver? Eu acho que não.
Angela Merkel dizia há poucas semanas que o problema nos países do Sul era simples: as pessoas trabalhavam pouco. Logo os factos destruíram as alegações da Chanceler alemã, os países do Sul trabalham mais horas por semana do que a Alemanha. Mas Angela Merkel demonstrou com essa afirmação todo o seu racismo económico. Para ela, os países do Sul estão em apuros porque são preguiçosos.
Em Portugal esta linha de argumentação tem sido defendida por muitos comentadores de cátedra. Utilizam as mesmas expressões e o mesmo racismo e concluem que tem de ocorrer um drástico corte nos salários dos portugueses, como já houve com os gregos. Mas a história parece estar mal contada. Não pode ser só isto.
Na verdade existe uma enorme disparidade produtiva na União Europeia, mas esta disparidade não é explicável com argumentos racistas mas sim com economia. Quando se criou um espaço de transacção livre de bens na Europa houve um aumento da eficiência económica nessa área. A concentração de um conjunto vasto de actividades num espaço grande permitiu diminuir os custos de produção, nomeadamente devido a enormes economias de escala que as empresas situadas nos países de maior dimensão conseguiam criar. Assim, os países maiores ganharam muito com a integração europeia, primeiro conseguiam escoar melhor os seus produtos e, depois, já tinham as maiores fábricas e mais trabalhadores que lhes permitiam aproveitar as economias de escala. As maiores economias ficaram mais competitivas e mais produtivas.
Assim, os países periféricos foram perdendo indústrias, capacidade produtiva, empregos, produtividade e competitividade. A União Europeia pretendia mitigar esta externalidade negativa (do ponto de vista dos países ganhadores) nos países periféricos compensando-os com fundos comunitários para que as economias se modernizassem. Os fundos nunca foram “ajudas” que desperdiçámos, foram compensações que recebíamos por estarmos a perder a capacidade produtiva e empregos. Enquanto os fundos vieram havia emprego e pudemos ir vivendo, até porque os produtos que vinham da Europa eram muito mais baratos do que alguma vez tínhamos tido a oportunidade de comprar.
Depois veio a moeda única, o euro, e os problemas dos países periféricos ainda ficaram mais pronunciados. Os países maiores conseguiram fortalecer as suas economias e os países periféricos perderam a possibilidade de usar um conjunto de políticas económicas, como a desvalorização da moeda, para aumentarem a sua competitividade e para poderem melhorar a sua balança comercial. Com uma moeda própria um país pode fazer descer o valor da moeda e com isso diminuir as importações e aumentar as exportações, o que retrai o consumo de produtos estrangeiros e promove o consumo de produtos internos.
Junto com o euro, veio o Banco Central Europeu, cujo mandato único é a estabilidade dos preços dentro da eurolândia. Por isso, se a inflação sobe acima dos 2%, o BCE imediatamente sobe as taxas de juro (como está a fazer hoje) e faz com que os créditos (à habitação ou às empresas) subam. Subindo os créditos, as empresas têm menos capacidade de investir e, logo, de criar emprego e sem emprego não há criação de riqueza. Mais uma vez, quem sofre mais com a subida das taxas de juro são os países periféricos, pois precisam de mais crédito para poderem investir porque não têm, à partida, tanto capital disponível.
Com este quadro chegámos à crise de 2008 e na Europa vários Estados tiveram de salvar os bancos que tinham comprado produtos financeiros tóxicos e especulativos. Além disso, a maioria dos bancos foi dando dividendos aos seus investidores e não mantiveram capital suficiente nos cofres, o que lhes permitia especular mais (a isto chama-se alavancar), mas não os deixava sobreviver em caso de uma crise.
As perdas dos bancos transferiram-se para os cofres públicos e, com isso, os cidadãos dos vários países tiveram de pagar a conta da especulação financeira. Os países maiores sobreviveram (aparentemente) melhor à crise, mas os países que já tinham problemas de competitividade não conseguiram ainda sair da crise e, face à retracção no consumo, sofrem agora a espiral recessiva.
A Alemanha, que já vimos ter ganho muito com o euro e com a União Europeia, pede agora políticas de austeridade aos países periféricos, o que ainda diminui mais a sua capacidade de crescimento, a sua competitividade, o seu emprego e a sua capacidade de pagar a dívida que tiveram de contrair para poder competir com a própria Alemanha.
Pelo caminho temos as agências de rating, que estão ligadas aos grandes fundos de investimento mundiais e que dão notas às possibilidades que os Estados e as empresas têm de pagar o dinheiro que pedem emprestado. Uma má nota faz subir os juros que os fundos de investimento ganham especulando com a dívida de um Estado e faz aumentar o preço do dinheiro que esse país pede emprestado. Com dinheiro mais caro é menos provável que o Estado consiga pagar e a nota da agência de rating volta a descer. Ciclo Infernal.
A hegemonia do discurso “A culpa é tua. Paga e cala-te!” é enorme, mas a culpa não é das pessoas que trabalham nos países periféricos e a dívida não é sua. Face ao racismo económico daqueles que mandam hoje na União Europeia fazem falta alternativas.
Em Portugal, como na Grécia um ano antes, o FMI, a Comissão Europeia e o BCE emprestaram dinheiro a juros impossíveis de pagar e exigiram, como contrapartida, o corte no subsídio de desemprego, o aumento de impostos, a facilitação dos despedimentos, privatizações em massa, etc. Mas não temos forma de pagar aqueles 30 milhões de euros que nos vão pedir só em juros, porque as medidas que querem que tomemos vão impedir o crescimento económico e, logo, a solução da crise.
Pedro Passos Coelho anunciou no debate do programa de Governo que iria realizar as medidas da troika e que teria medidas adicionais, como o corte de 50% do 13º mês. Essas medidas adicionais eram apenas um sinal que o primeiro-ministro queria dar aos mercados, para aumentar a sua confiança e, acto contínuo, a agência de ratingMoody’s baixou a nota da república em 4 níveis. A austeridade é o pior caminho.
Nos últimos dias saíram dos livros de história conceitos como “New Deal” (programa de investimento público implementado por Rosevelt nos EUA depois da crise financeira de 1929) e “Plano Marshal” (programa americano de financiamento da economia europeia no pós segunda guerra mundial), que apontam caminhos absolutamente diferentes para a solução da crise das dívidas soberanas. Mas ambos têm algo em comum, investimento público para parar a recessão, criar emprego e, com a riqueza produzida, pagar a dívida. A Europa segue hoje o caminho contrário, com a austeridade a abrir caminho aos Círculos do Inferno de Dante.
Mas, antes de tudo, precisamos de saber o que estamos a pagar, quanto é a nossa parte e como podemos negociar com os credores para não sofrermos juros que são apenas especulação financeira. Assim, a auditoria à dívida é o primeiro passo que temos de apoiar, porque é o único que nos permite perceber o que estamos a pagar.
Se não o fizermos vamos pagar esta dívida com os cortes nos salários, com o desemprego e com mais precariedade. Temos ainda mais esta batalha para travar.
Porque isto anda tudo ligado, acredito que os trabalhadores precários só podem vencer a sua batalha aliando-se a outros sectores e combatendo a política económica que nos leva ao desastre.
Hoje somos todos gregos.